Thursday, September 15, 2005

A caixa - parte I

Existem várias maneiras de não conversar. Você dá um sorriso agradável ao passageiro ao lado; dá uma chance à sua ladainha, vira a cabeça e finge dormir. Fones de ouvido, ótimo recurso; se a paciência for menor que isso, o neutro balançar de cabeça seguido de um murmúrio (importante que sejam executados com o menor gasto de energia possível) costuma deixar claro o seu interesse em não prosseguir com essa bela, humana e necessária expansão de horizontes. Evolução hoje não, obrigado.
Não gosto de conversar em viagens. De fato, não gosto de conversar em filas, casamentos; não gosto de conversar quando eu estou esperando, almoçando, me embriagando. Acho que não gosto de conversar. O que é estranho, porque eu também acho que toda pessoa guarda algo interessante em algum lugar. Preferia ler. Gostaria que cada um escrevesse um livro e lá reunisse todas as suas histórias, impressões, opiniões, valores, pontos de vista, sentimentos, críticas e mesmo comentários corriqueiros. Numa viagem como essa, simplesmente trocaríamos os livros com o passageiro ao lado teríamos tudo de que precisássemos. Sociabilidade é algo difícil e trabalhoso demais para valer seus benefícios. Solidão é um amigo amargo, ainda assim um amigo; implacável, porém sempre compreensivo; não importa o quanto as coisas mudem, ela sempre está lá para você. Solidão é o único amigo com o qual se pode contar, e para pessoas como eu é uma amante sempre recorrendo ao seu colo.
O ônibus para na rodoviária de volta redonda. Viagens longas às vezes o fazem se sentir amargo. Imagine que este é meu livro que eu troquei pelo seu.
Viagem rotineira para um professor. Estou aqui para mais um curso de uma semana. Mais um curso medíocre para alunos medíocres, depois do qual o único resultado vai ser uma breve lembrança de uma semana em que não tiveram que trabalhar. Ensino, eles fingem que aprendem, aperto de mãos prometendo estender o contato e a vida de todos continua perfeitamente idêntica ao que era antes. Somente um detalhe diferente desta vez: fui obrigado a viajar com uma caixa. Não tenho idéia do que ela contém.
É uma caixa pesada, cerca de 30 kg; madeira; de fato, precisei de ajuda para levá-la ao hotel. Do tamanho de um pequeno televisor, a caixa está fechada com pregos, nada discernível escrito, nenhum recurso para olhar, ouvir, cheirar o que há dentro, além das instruções implícitas para não abrir. Foi-me entregue por um funcionário da empresa que pagou pelo curso; disse não saber do que se tratava, mas não foi passado a ele nenhum cuidado específico em relação ao seu manuseio ou à fragilidade do conteúdo. Imagino que esta firma deve pedir muitas entregas desta forma não usual: embora tenha sido um grande contratempo embarca-la (e tenha envolvido bastante dinheiro), ao chegar à cidade, a simples visão da caixa pareceu trazer o melhor que há nas pessoas. Imediatamente após à sua retirada do ônibus, quatro voluntários apressadamente não ofereceram somente ajuda, mas carrega-la sozinha até o hotel. Não só a caixa, mas também as minhas malas, o material do curso, e imagino que carregariam a mim se eu pedisse. Recebi transporte gratuito até o hotel, onde fui recebido como uma espécie de celebridade. Recusaram todas as gorjetas oferecidas por mim, e não foram gorjetas baixas. Todos disserem não possuir ligação alguma com a empresa. De todo jeito, nunca vi uma cidade com tantos sorrisos e tanta boa vontade. Será que todos os turistas são recebidos com esta intensidade? Os quatro homens que carregaram a caixa, com o físico de trabalhadores braçais porém vestidos como advogados; o motorista do táxi, o carro mais confortável em que já andei, com maneirismos de alguém que está sendo muito bem pago para fingir; a recepcionista do hotel, que se não estivesse preenchendo fichas em uma portaria em Volta Redonda poderia facilmente estar na capa da revista Caras disponível na espera do hotel como mais uma super modelo qualquer; e o sorriso de todas essas pessoas, de forma inédita e quase sobrenatural, puros e sinceros como de crianças, sem o profissionalismo dos meus próprios sorrisos recebidos por meus alunos. Talvez eu tenha mentido para você antes e sociabilidade realmente não machuque.

A caixa - parte II

Abro a porta do melhor quarto do hotel; as malas já estão lá. Uma cidade pequena como essa não deveria possuir um hotel deste nível. A cama, onde podem dormir pelo menos quatro pessoas diferentes, possui massagem e aquecimento automáticos e está coberta de chocolates e rosas. A TV de plasma cobre toda a parede e está exibindo canais japoneses dos quais nunca ouvi falar. A banheira poderia hospedar uma festa; o aparelho se som poderia suprir um trio elétrico; a privada me faz rir de seu ridículo (aquecida e toca música); mesmo o famoso book do hotel, colocado discretamente sob a bíblia, inédito. Encadernado em couro com mais de 200 páginas e conteúdo que me satisfaria se eu fosse gay, ou interessado em S&M, ou praticante de orgias, ou mesmo fantasiasse com celebridades (há clones de Britney Spears até Sandy). No lugar dos preços, um durex preto colado, onde está escrito “cortesia do hotel”. Tão discreta que basta digitar um número específico no teclado do telefone seguido do código do produto escolhido, escrito abaixo da foto. Noto que a caixa está no canto do quarto. Não sofreu nenhum arranhão na viagem. Tudo no mínimo incomum, mas sedutor demais para que se perca tempo perguntando por quê. Tomo um banho de um deus, como o jantar de um deus e me preparo para dormir um sono de um deus. E durmo, até em torno de duas da manhã quando sou acordado por um toque de campainha. Levanto me sentindo como se estivesse dentro d´água; visto o roupão de linho que já estava ao lado da cama, abro a porta e dou de cara com uma maravilhosa mulher, que reconheço da primeira foto da primeira página do book. Pele morena, alta e magra, mas com curvas que alguém magro desta forma deve ter roubado para ter. Cabelo comprido e anelado, traços fortes e uma boca que ainda irão mandar prender por possuir. Vestida como sua profissão exige, maquiada com preto intenso nos olhos. Vestido vulgar, mas funciona, e funciona muito mais que eu imaginaria. E o detalhe importante: o mesmo sorriso sem artificialidade compartilhado pela cidade. Noto que ela encara a caixa no canto do quarto. Olha diretamente para ela, depois diretamente nos meus olhos, exercendo uma espécie de influência que me incomoda tanto quanto me agrada. Se ela me mandasse ajoelhar neste momento eu me ajoelharia; porém ela somente sorri. Vulgar, com a presença de uma santa.
-Eu vim te trazer um sonho. Aceita se trocar por ele?
-Me trate como se eu fosse seu – não acreditei que saiu de minha boca.
Passamos um bom tempo somente trocando cheiros. Ela deitada, roupas no chão; eu senti o leve odor de sua pele que me embriagou como uma droga. Cheiro leve mas penetrante, cheiro de mulher, como eu gostaria que toda mulher cheirasse. Algo intangível, como o sonho que ela veio trazer para mim. Enrosquei seus cabelos em meu rosto e seu cheiro que fez querer ser seu filho. Aproximei-me dos seus seios mas não toquei em sua pele. Ela também sentia meu cheiro e parecia o sorver, como se estivesse absorvendo alguma coisa de mim. Me senti confortável, quente, e flutuando como em um útero. Lábios como os dela não foram feitos para serem beijados, mas para manter um homem acordado noites inteiras imaginando qual seria a sensação daqueles lábios tocando qualquer lugar em seu corpo. Mas mesmo assim os beijei.
-Você quer me provar de verdade? – sussurrado em meu ouvido.
Estou amarrado e vendado na cama. Não posso me mover e não posso ver. Fico largado assim por uma eternidade, não posso ouvi-la no quarto. Começo a sentir a agonia de alguém que foi enganado e foi amarrado para ser largado aqui. Quando já penso em gritar, sinto um cheiro diferente, porém muito mais inebriante. A mulher sem nome colocou sua vagina próxima à minha boca. Beijo-a com meus lábios, como a sua boca, porém com mais delicadeza, quero tocá-la com desespero, mas permaneço amarrado. Quando dou uma primeira lambida lenta, sinto um gosto familiar, porém muito mais envolvente que o gosto das outras que já experimentei. Ao mesmo tempo sua boca envolve meu pênis e ela não parece fazê-lo por obrigação, parece adorá-lo como se fosse um objeto sagrado, esfregando-o em seu rosto, lambendo cada um dos centímetros com igual dedicação, forte e fraco, explorando toda a área, com uma lentidão insuportável , igual à lentidão de minhas lambidas. Esse ritmo aumenta conforme o meu ritmo aumenta, estamos sincronizados, me lambuzo com seu líquido e gozo ao mesmo tempo que ela, com a língua penetrando em sua abertura e sentindo o movimento do orgasmo dos músculos da vagina comprimindo-a. Adormeço ainda vendado e amarrado e tenho o sonho que ela veio me trazer.

A caixa -Final

Estou em pé, sozinho, em um lugar longe da cidade. Este lugar é como um sítio e parece bastante familiar, talvez um lugar da minha infância, talvez seja só aquela sensação que só existe em sonhos, de que eu sei o que está acontecendo sem que ninguém me conte. Nada fora do comum, exceto de que neste sítio existe um vulcão. Olho para ele com um interesse vago de alguém que encara algo brutal e poderoso e ao mesmo tempo onírico e distante; sensação que é cortada com o barulho e a vibração de todo o chão deste lugar tremendo. O vulcão explode. Não em lava, mas em balões. Balões de todas as cores enchem o ar saindo da boca do vulcão, flutuam para todas as direções, não parecem seguir nenhum vento, não parecem a ir a nenhum lugar especial, preferem seguir sua própria vontade e não se submeter à nenhuma lei. Perto de mim estou cercado de balões: alguns começam a se tornar pequenos, outros enormes, e a assumir formas estranhas. Quando um pequeno balão estoura logo em minha frente começo a compreender o que está acontecendo: de dentro um beija-flor sai voando velozmente. Todos os balões estouram, cada um gerando mais alguma coisa neste lugar, plantas, animais, rochas, árvores. Um enorme balão estoura e agora existe uma casa aqui. Entro nesta casa e subo as escadas. No andar de cima, percebo que não estou em uma casa. Estou em um hotel idêntico ao que estou hospedado agora. Todas as pessoas que vi nesta cidade estão ali: os carregadores de caixa, o motorista do táxi, a modelo da portaria. Mas todos estão em pé, parados, uma coisa inanimada, sem vida, como bonecos que foram desligados da tomada. Subo e procuro meu quarto; a porta está destrancada. Me vejo dormindo sozinho na cama, desamarrado; a mulher já foi embora. Olho para a caixa no canto do quarto e entendo tudo o que está acontecendo.
Acordo na cama neste exato momento.
Realmente estou desamarrado; vejo as marcas no meu pulso. Não estou mais vendado, não vejo nem sinal da mulher sem nome, nem da corda, nem da venda. Caminho lentamente até a minha mala; abro-a e tiro um martelo que eu não coloquei lá, mas tinha certeza que encontraria. Um por um, os pregos da tampa da caixa de madeira são tirados com o lado posterior do martelo; quando o último prego sai, levanto a tampa de madeira, fazendo uma certa força adicional para terminar de solta-la. Deixo a tampa de lado e olho para dentro. A caixa contém exatamente o que eu sabia que continha.
A caixa está cheia de barro.
Tiro uma boa quantidade de barro desta caixa. Meus braços estão completamente sujos, até a manga da camisa. Começo a moldá-lo como um escultor experiente. Uma forma mais que conhecida. No barro eu moldo meu corpo, meu rosto, até a última pinta, até os últimos detalhes. Em poucos minutos tenho uma estátua idêntica a mim deitada no chão. Viro as costas e espero que ela se levante. Sinto sua mão tocar no meu ombro, a textura de pele quente perfeitamente humana.
- Fique – digo para ela – você tem um treinamento para ministrar amanhã. Aproveite que a empresa pôde pagar por um bom hotel. Eu consegui me lembrar do que eu precisava e já posso ir embora.
Saio calmamente da sala e bato a porta atrás de mim. Sou levado embora por mais um táxi novamente grátis, deixando minha caixa em mais uma cidade que eu criei.