Friday, October 29, 2004

O colecionador parte II

O ar estava denso, pesado. A atmosfera era tão desconfortável que Daniel tinha a sensação de não estar respirando ar, ao menos não como conhecemos, mas algo espesso, quente, incômodo, não nutritivo. O sono foi agitado, inconstante, repleto de sonhos. Acordou suando frio diversas vezes, esforçando-se para se lembrar do que havia sonhado, e, embora estivesse certo de que era o mesmo sonho durante toda a noite, não sabia qual era.

Acordou no dia seguinte literalmente acabado. No sábado não tinha que trabalhar, porém não havia desejo de sociabilidade. Pensou em ligar para Alice, mas era um desejo tão distante que a simples idéia da existência dela parecia irreal. Custou a admitir para si mesmo que o seu real interesse naquele dia era a esfera. Mesmo tentando se convencer que era um objeto absolutamente sem importância, era inegável que, de alguma forma, exercia um certo grau de atração e de repulsa.

O ar continuava acre e pesado, como nunca esteve em sua casa; sentia-se levemente enjoado. Sentou-se de frente à mesa examinando o copo onde havia colocado a esfera. O copo estava enegrecido; da base até quase a borda, estava coberto de uma substância preta, sólida, meio porosa, como se alguém esfregasse pólvora molhada em todo o seu corpo. Teria essa substância vindo da esfera? Ela continuava lá, perfeita, e do mesmo tamanho que se lembrava. Exalava um forte cheiro agora também, um cheiro extremamente doce e agradável, um doce não enjoativo, na verdade o melhor perfume que Daniel já havia experimentado. Passou a mão pela substância preta; sentiu somente a textura de vidro normal. É como se ela já fosse parte do copo. Virou o copo e segurou a esfera na mão.

Na verdade, se não fosse por sua forma esférica perfeitamente simétrica, realmente parecia estar segurando algo como uma cereja. A esfera mantinha sua consistência úmida como uma fruta; apertando-a levemente, sentiu uma leve flexibilidade como se de fato apertasse uma. Não precisou cheirá-la para compreender que vinha dela o cheiro doce espalhado pelo quarto. Segurar este objeto aumentava a sensação de ansiedade e de peso que sentiu a noite inteira; além disso, trazia uma certa fascinação, uma sensação quase hipnotizante de prazer, impossível determinar porque. O quê, afinal, seria isso? A curiosidade lhe apertava o peito, mas não conseguia sentir energia suficiente para tomar alguma atitude para solucionar esta dúvida.

Contentava-se em segurar a esfera em sua mão.

E isso durou toda a manhã, e toda a tarde também. O telefone tocou em vão. As sensações de fome e de desconforto físico vieram e se foram, apenas para voltarem novamente. Daniel permanecia imóvel, a esfera imóvel em sua mão. Em certo momento, tudo lhe indicava que havia adormecido; um sono, por incrível que pareça, mais desconfortável que o da noite. Quando deu por si, ainda sentado na cadeira, o pescoço e as costas doídos, a tarde já dava lugar à noite e dessa vez Daniel lembrou-se vagamente do que acreditava ter sonhado.
Sonhou que diversas pessoas estiveram em sua casa durante a tarde, indo e saindo, às vezes muitas ao mesmo tempo. Não se lembrava quem eram essas pessoas, nem o que queriam, porém estava claro que estavam interessadas nele. Será que chegaram a se falar? Tudo indica que não; apenas olhavam para ele intensamente, mas nenhuma palavra era dita por nenhuma das partes. Depois, silenciosamente, se retiravam. A última delas fez algo no batente antes de fechar a porta; pela primeira vez desde que segurou a esfera na mão, Daniel levantou-se do lugar e correu até a porta, abrindo-a de supetão.
Outra esfera idêntica havia sido deixada ali. Daniel olhou para a palma da mão onde havia segurado a primeira esfera durante todo o dia; estava enegrecida como havia ficado o copo, porém não sentia nada de diferente em sua pele. Pegou a segunda esfera e a levou para dentro de casa.

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