Friday, October 29, 2004

O Colecionador Parte I

Cavallo. É, eu sei que é ridículo.
Daniel dá uma risada sem graça. A típica brincadeira que tem fundo de verdade. Não acha isso realmente engraçado, e, pela milionésima vez, amaldiçoa seu maldito ancestral que resolveu dar esse nome horrível à sua família e que, sem querer, estava condenando gerações futuras de garotos (ele inclusive) a anos de apelidos infernais na escola.

Claro que a garota diria que não tem nada de ridículo no nome; porém, nada que dissesse tiraria da sua cabeça que é por isso que elas logo se afastam sem dizer o nome. Eu não sei chegar em garotas, Daniel pensa também pela milionésima vez; porquê parece tão fácil para algumas pessoas? O que as pessoas se dizem nesse momento? Se diz algo que consegue ao mesmo tempo não soar grosseiro nem artificial? Certos mistérios são insondáveis por natureza; certos talentos são delegados à alguns e negados a outros, como se Deus organizasse uma fila e ele estivesse muito ocupado no momento para ocupar um lugar. “E vai se fuder também” pensa para Deus.

É por isso que o ambiente de casa noturna é tão propício. Álcool e drogas não são apenas tolerados, mas literalmente espera-se que estejam correndo na sua corrente sanguínea. Estar alí sem a consciência alterada é como trocar sexo por masturbação; experiências semelhantes, porém nem sequer no mesmo plano.

É bom sentir seu corpo diluído nas luzes. As batidas que soam ao mesmo tempo brega e agressivas, exatamente na borda da genialidade e da infantilidade total como é característico de todo som que se inspira nos anos 80 (o que significa, pensa Daniel, toda a música que existe para quem freqüenta lugares como aquele). Claro que ele sempre desce as escadas pensando em sexo, mas muito mais do que gostaria, ao contrário do que prega aos seus amigos, ele sai sozinho e sua noite se resumiu à apenas conversas bêbadas sobre coisas que pareciam muito importantes na hora mas estúpidas no dia seguinte.

Hoje, excepcionalmente, estava completamente sozinho. Nenhum amigo se dispôs e Daniel amava o Globo Repórter; amava a forma como ele sempre o obrigava a sair de casa. Já sentindo que todos os químicos (inclusive o álcool) deixavam de fazer efeitos, e sem energia para renovar as doses, decidiu que estava na hora de iniciar sua caminhada noturna para casa.

Morava sozinho; casa paga pelos pais que vivem no interior. E o interior da casa lembra muito como o interior do dono se encontra agora; vazio e o pouco que existe, desorganizado. Pelo menos não é um apartamento; odiava apartamentos e dane-se se a casa era velha e pequena, seu único problema é possuir um pequeno jardim na frente. Não tinha paciência para jardins e deixou de tentar cuidar dele após um mês de estadia.

- Boa noite, Matusa, eu lembrei da sua dose.

Matusa estava dormindo. Daniel sempre deixava um copo de plástico cheio de pinga para Matusa no caminho para casa. No início, fazia isso apenas porque ele e seus amigos riam vendo o mendigo sem dois dedos virando um copo inteiro daquela pinga péssima de uma vez só e resolveram transformar isso em uma tradição informal. Agora, não sabia porque continuava; só sabia que continuava. Após a mesma sucessão monótona de ruas do velho e enjoado caminho de casa, avistou seu jardim. Mas que merda era aquela?

Agora não havia mais nada. Por um breve segundo, Daniel teve a certeza absoluta de ter enxergado alguém em pé no seu jardim, de costas para ele. Mais especificamente, alguém pequeno; anão ou criança. E vestido em trajes femininos brancos; vestido de noiva? Seria uma garotinha? Mais detalhes não havia visto e poderia ser algo que não tem nada a ver com isso. Ainda com o coração disparado, racionalizou e arquivou a ocorrência na pasta “alucinações aleatórias causadas por uso constante de drogas e exaustão” deu o assunto por encerrado. Parado na porta da frente, deixou cair a chave; abaixando-se para pegá-la, algo que nunca havia visto na vida chamou imediatamente sua atenção. Daniel abaixou-se sobre um joelho para examinar.

Não era uma bolinha qualquer. Na verdade, era uma esfera milimetricamente perfeita; do tamanho de uma cereja, porém com um vermelho muito mais vivo e o formato muito artificial para ser algo produzido pela natureza. Pegou-a e notou que era decerto úmida e fria, exatamente a consistência de uma pequena fruta.
Só não sabia porque, o fato de estar segurando isso lhe trazia um misto de sensações tão esquisito; bem no fundo de sua cabeça algo sinalizava intensa ansiedade, talvez algo a temer, talvez algo a amar, porém era uma sensação vaga e indistinta. Amanhã eu vejo o que é; levou a pequena fruta para dentro e fechou a porta. A esfera agora estava dentro de um copo de vidro.



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