Thursday, September 15, 2005

A caixa - parte I

Existem várias maneiras de não conversar. Você dá um sorriso agradável ao passageiro ao lado; dá uma chance à sua ladainha, vira a cabeça e finge dormir. Fones de ouvido, ótimo recurso; se a paciência for menor que isso, o neutro balançar de cabeça seguido de um murmúrio (importante que sejam executados com o menor gasto de energia possível) costuma deixar claro o seu interesse em não prosseguir com essa bela, humana e necessária expansão de horizontes. Evolução hoje não, obrigado.
Não gosto de conversar em viagens. De fato, não gosto de conversar em filas, casamentos; não gosto de conversar quando eu estou esperando, almoçando, me embriagando. Acho que não gosto de conversar. O que é estranho, porque eu também acho que toda pessoa guarda algo interessante em algum lugar. Preferia ler. Gostaria que cada um escrevesse um livro e lá reunisse todas as suas histórias, impressões, opiniões, valores, pontos de vista, sentimentos, críticas e mesmo comentários corriqueiros. Numa viagem como essa, simplesmente trocaríamos os livros com o passageiro ao lado teríamos tudo de que precisássemos. Sociabilidade é algo difícil e trabalhoso demais para valer seus benefícios. Solidão é um amigo amargo, ainda assim um amigo; implacável, porém sempre compreensivo; não importa o quanto as coisas mudem, ela sempre está lá para você. Solidão é o único amigo com o qual se pode contar, e para pessoas como eu é uma amante sempre recorrendo ao seu colo.
O ônibus para na rodoviária de volta redonda. Viagens longas às vezes o fazem se sentir amargo. Imagine que este é meu livro que eu troquei pelo seu.
Viagem rotineira para um professor. Estou aqui para mais um curso de uma semana. Mais um curso medíocre para alunos medíocres, depois do qual o único resultado vai ser uma breve lembrança de uma semana em que não tiveram que trabalhar. Ensino, eles fingem que aprendem, aperto de mãos prometendo estender o contato e a vida de todos continua perfeitamente idêntica ao que era antes. Somente um detalhe diferente desta vez: fui obrigado a viajar com uma caixa. Não tenho idéia do que ela contém.
É uma caixa pesada, cerca de 30 kg; madeira; de fato, precisei de ajuda para levá-la ao hotel. Do tamanho de um pequeno televisor, a caixa está fechada com pregos, nada discernível escrito, nenhum recurso para olhar, ouvir, cheirar o que há dentro, além das instruções implícitas para não abrir. Foi-me entregue por um funcionário da empresa que pagou pelo curso; disse não saber do que se tratava, mas não foi passado a ele nenhum cuidado específico em relação ao seu manuseio ou à fragilidade do conteúdo. Imagino que esta firma deve pedir muitas entregas desta forma não usual: embora tenha sido um grande contratempo embarca-la (e tenha envolvido bastante dinheiro), ao chegar à cidade, a simples visão da caixa pareceu trazer o melhor que há nas pessoas. Imediatamente após à sua retirada do ônibus, quatro voluntários apressadamente não ofereceram somente ajuda, mas carrega-la sozinha até o hotel. Não só a caixa, mas também as minhas malas, o material do curso, e imagino que carregariam a mim se eu pedisse. Recebi transporte gratuito até o hotel, onde fui recebido como uma espécie de celebridade. Recusaram todas as gorjetas oferecidas por mim, e não foram gorjetas baixas. Todos disserem não possuir ligação alguma com a empresa. De todo jeito, nunca vi uma cidade com tantos sorrisos e tanta boa vontade. Será que todos os turistas são recebidos com esta intensidade? Os quatro homens que carregaram a caixa, com o físico de trabalhadores braçais porém vestidos como advogados; o motorista do táxi, o carro mais confortável em que já andei, com maneirismos de alguém que está sendo muito bem pago para fingir; a recepcionista do hotel, que se não estivesse preenchendo fichas em uma portaria em Volta Redonda poderia facilmente estar na capa da revista Caras disponível na espera do hotel como mais uma super modelo qualquer; e o sorriso de todas essas pessoas, de forma inédita e quase sobrenatural, puros e sinceros como de crianças, sem o profissionalismo dos meus próprios sorrisos recebidos por meus alunos. Talvez eu tenha mentido para você antes e sociabilidade realmente não machuque.

A caixa - parte II

Abro a porta do melhor quarto do hotel; as malas já estão lá. Uma cidade pequena como essa não deveria possuir um hotel deste nível. A cama, onde podem dormir pelo menos quatro pessoas diferentes, possui massagem e aquecimento automáticos e está coberta de chocolates e rosas. A TV de plasma cobre toda a parede e está exibindo canais japoneses dos quais nunca ouvi falar. A banheira poderia hospedar uma festa; o aparelho se som poderia suprir um trio elétrico; a privada me faz rir de seu ridículo (aquecida e toca música); mesmo o famoso book do hotel, colocado discretamente sob a bíblia, inédito. Encadernado em couro com mais de 200 páginas e conteúdo que me satisfaria se eu fosse gay, ou interessado em S&M, ou praticante de orgias, ou mesmo fantasiasse com celebridades (há clones de Britney Spears até Sandy). No lugar dos preços, um durex preto colado, onde está escrito “cortesia do hotel”. Tão discreta que basta digitar um número específico no teclado do telefone seguido do código do produto escolhido, escrito abaixo da foto. Noto que a caixa está no canto do quarto. Não sofreu nenhum arranhão na viagem. Tudo no mínimo incomum, mas sedutor demais para que se perca tempo perguntando por quê. Tomo um banho de um deus, como o jantar de um deus e me preparo para dormir um sono de um deus. E durmo, até em torno de duas da manhã quando sou acordado por um toque de campainha. Levanto me sentindo como se estivesse dentro d´água; visto o roupão de linho que já estava ao lado da cama, abro a porta e dou de cara com uma maravilhosa mulher, que reconheço da primeira foto da primeira página do book. Pele morena, alta e magra, mas com curvas que alguém magro desta forma deve ter roubado para ter. Cabelo comprido e anelado, traços fortes e uma boca que ainda irão mandar prender por possuir. Vestida como sua profissão exige, maquiada com preto intenso nos olhos. Vestido vulgar, mas funciona, e funciona muito mais que eu imaginaria. E o detalhe importante: o mesmo sorriso sem artificialidade compartilhado pela cidade. Noto que ela encara a caixa no canto do quarto. Olha diretamente para ela, depois diretamente nos meus olhos, exercendo uma espécie de influência que me incomoda tanto quanto me agrada. Se ela me mandasse ajoelhar neste momento eu me ajoelharia; porém ela somente sorri. Vulgar, com a presença de uma santa.
-Eu vim te trazer um sonho. Aceita se trocar por ele?
-Me trate como se eu fosse seu – não acreditei que saiu de minha boca.
Passamos um bom tempo somente trocando cheiros. Ela deitada, roupas no chão; eu senti o leve odor de sua pele que me embriagou como uma droga. Cheiro leve mas penetrante, cheiro de mulher, como eu gostaria que toda mulher cheirasse. Algo intangível, como o sonho que ela veio trazer para mim. Enrosquei seus cabelos em meu rosto e seu cheiro que fez querer ser seu filho. Aproximei-me dos seus seios mas não toquei em sua pele. Ela também sentia meu cheiro e parecia o sorver, como se estivesse absorvendo alguma coisa de mim. Me senti confortável, quente, e flutuando como em um útero. Lábios como os dela não foram feitos para serem beijados, mas para manter um homem acordado noites inteiras imaginando qual seria a sensação daqueles lábios tocando qualquer lugar em seu corpo. Mas mesmo assim os beijei.
-Você quer me provar de verdade? – sussurrado em meu ouvido.
Estou amarrado e vendado na cama. Não posso me mover e não posso ver. Fico largado assim por uma eternidade, não posso ouvi-la no quarto. Começo a sentir a agonia de alguém que foi enganado e foi amarrado para ser largado aqui. Quando já penso em gritar, sinto um cheiro diferente, porém muito mais inebriante. A mulher sem nome colocou sua vagina próxima à minha boca. Beijo-a com meus lábios, como a sua boca, porém com mais delicadeza, quero tocá-la com desespero, mas permaneço amarrado. Quando dou uma primeira lambida lenta, sinto um gosto familiar, porém muito mais envolvente que o gosto das outras que já experimentei. Ao mesmo tempo sua boca envolve meu pênis e ela não parece fazê-lo por obrigação, parece adorá-lo como se fosse um objeto sagrado, esfregando-o em seu rosto, lambendo cada um dos centímetros com igual dedicação, forte e fraco, explorando toda a área, com uma lentidão insuportável , igual à lentidão de minhas lambidas. Esse ritmo aumenta conforme o meu ritmo aumenta, estamos sincronizados, me lambuzo com seu líquido e gozo ao mesmo tempo que ela, com a língua penetrando em sua abertura e sentindo o movimento do orgasmo dos músculos da vagina comprimindo-a. Adormeço ainda vendado e amarrado e tenho o sonho que ela veio me trazer.

A caixa -Final

Estou em pé, sozinho, em um lugar longe da cidade. Este lugar é como um sítio e parece bastante familiar, talvez um lugar da minha infância, talvez seja só aquela sensação que só existe em sonhos, de que eu sei o que está acontecendo sem que ninguém me conte. Nada fora do comum, exceto de que neste sítio existe um vulcão. Olho para ele com um interesse vago de alguém que encara algo brutal e poderoso e ao mesmo tempo onírico e distante; sensação que é cortada com o barulho e a vibração de todo o chão deste lugar tremendo. O vulcão explode. Não em lava, mas em balões. Balões de todas as cores enchem o ar saindo da boca do vulcão, flutuam para todas as direções, não parecem seguir nenhum vento, não parecem a ir a nenhum lugar especial, preferem seguir sua própria vontade e não se submeter à nenhuma lei. Perto de mim estou cercado de balões: alguns começam a se tornar pequenos, outros enormes, e a assumir formas estranhas. Quando um pequeno balão estoura logo em minha frente começo a compreender o que está acontecendo: de dentro um beija-flor sai voando velozmente. Todos os balões estouram, cada um gerando mais alguma coisa neste lugar, plantas, animais, rochas, árvores. Um enorme balão estoura e agora existe uma casa aqui. Entro nesta casa e subo as escadas. No andar de cima, percebo que não estou em uma casa. Estou em um hotel idêntico ao que estou hospedado agora. Todas as pessoas que vi nesta cidade estão ali: os carregadores de caixa, o motorista do táxi, a modelo da portaria. Mas todos estão em pé, parados, uma coisa inanimada, sem vida, como bonecos que foram desligados da tomada. Subo e procuro meu quarto; a porta está destrancada. Me vejo dormindo sozinho na cama, desamarrado; a mulher já foi embora. Olho para a caixa no canto do quarto e entendo tudo o que está acontecendo.
Acordo na cama neste exato momento.
Realmente estou desamarrado; vejo as marcas no meu pulso. Não estou mais vendado, não vejo nem sinal da mulher sem nome, nem da corda, nem da venda. Caminho lentamente até a minha mala; abro-a e tiro um martelo que eu não coloquei lá, mas tinha certeza que encontraria. Um por um, os pregos da tampa da caixa de madeira são tirados com o lado posterior do martelo; quando o último prego sai, levanto a tampa de madeira, fazendo uma certa força adicional para terminar de solta-la. Deixo a tampa de lado e olho para dentro. A caixa contém exatamente o que eu sabia que continha.
A caixa está cheia de barro.
Tiro uma boa quantidade de barro desta caixa. Meus braços estão completamente sujos, até a manga da camisa. Começo a moldá-lo como um escultor experiente. Uma forma mais que conhecida. No barro eu moldo meu corpo, meu rosto, até a última pinta, até os últimos detalhes. Em poucos minutos tenho uma estátua idêntica a mim deitada no chão. Viro as costas e espero que ela se levante. Sinto sua mão tocar no meu ombro, a textura de pele quente perfeitamente humana.
- Fique – digo para ela – você tem um treinamento para ministrar amanhã. Aproveite que a empresa pôde pagar por um bom hotel. Eu consegui me lembrar do que eu precisava e já posso ir embora.
Saio calmamente da sala e bato a porta atrás de mim. Sou levado embora por mais um táxi novamente grátis, deixando minha caixa em mais uma cidade que eu criei.

Thursday, November 04, 2004

O Colecionador - Final

E então eles vieram.

Daniel não se recorda de nada desta noite. Não se recorda de ter sentido dor, não se recorda de ter sentido qualquer tipo de êxtase. Quando pensa nesta noite, lembra-se de um sono profundo e bem dormido,talvez de um sonho vago com todas aquelas pessoas em volta de sua cama, acompanhando o momento sublime em que finalmente agarraria com as duas mãos seu propósito nesse mundo.
Acordou
Não havia ninguém. Porém, não olhava com o mesmo olhar: na verdade, não olhava sequer com os mesmos olhos. Como um recém nascido que os abre pela primeira vez, sentiu a luz os ferir, porém não era a mesma luz que conhecia. Era uma luz nova, vista pela primeira vez,: na verdade, estava vendo tudo pela primeira vez. Os móveis, a parede, o teto,a luminária, os cobertores: eram os mesmos objetos que conhecia e compreendia, porém não eram as mesmas coisas. Tudo adquirira um mesmo tom branco-acinzentado, como se os objetos fossem menos (ou mais) reais do que eram ontem à noite. Daniel tinha certeza que estava olhando a face verdadeira das coisas pela primeira vez.

Caminhou até o copo enegrecido que ainda estava em cima da mesa. No lugar das duas esferas, ali estavam, como esperado, as duas sementes extraídas de seu corpo. Ali estavam seus dois olhos.
Nas suas órbitas, anteriormente habitadas por seus dois olhos, estavam as duas esferas vermelhas, perfeitamente redondas. Daniel não precisou olhar no espelho para saber. Havia recebido sua recompensa.

“Sementes existem para dar frutos.”

Lembrou-se da importante lição de Matusa e caminhou até o jardim levando o copo na mão. Cavou a terra úmida, em dois buracos não muito fundos e espaçados; em cada um dos buracos colocou um dos seus olhos. Tapou os buracos com a terra, entrou novamente em casa. Dali só sairia alguns meses depois, quando cada uma das sementes plantadas desse origem à uma pequena árvore, e cada uma das árvores desse origem à somente um fruto: uma pequena esfera vermelha perfeitamente simétrica. Então, finalmente, pagaria sua dívida com o mundo.

Deixaria uma pequena esfera vermelha na porta do próxima colecionador de dádivas.

Wednesday, November 03, 2004

O Colecionador Parte III

Daniel gostaria de estar nauseado. Comparado com o que sentia agora, tudo o que se passou ontem se resumia a um leve desconforto físico e talvez um certo incômodo espiritual. O cheiro doce e agradável se impunha em toda a casa, invadia todos os quartos e Daniel estava se sentindo exausto, sufocado, cansado demais para sequer vomitar, drenado demais para pensar com clareza.

Embora sua intenção fosse segurar a esfera novamente, nada lhe restava a não ser deitar-se novamente na cama e esperar que os sonhos febris voltassem.
O copo enegrecido agora continha duas esferas idênticas.

A temperatura da casa estava sensivelmente mais baixa (ou seria Daniel que estava apenas com frio?), ainda assim suava intensamente. Olhou para a mão que havia ficado preta como o copo: aquela substância etérea ainda estava ali, continuava a não provocar nenhuma sensação em especial, e se espalhava pelo braço.

Sonhos se pronunciavam como flashes indistintos, insistindo em invadir sua consciência desperta. Uma sensação vaga sugeria uma certa ameaça naquilo tudo, por isso lutava para manter-se acordado; temia que pessoas estranhas vagassem por sua casa novamente, temia que acordasse e seu corpo estivesse totalmente tomado por aquilo que nascia de sua mão. Porém, estava fraco demais até para isso. Se via deitado na cama, mas agora não tinha nada que lhe garantisse estar dormindo ou acordado. Percebeu, então, que o velho mendigo Matusa estava sentado no chão ao lado de sua cama. Não o viu entrar; à quanto tempo estava ali? Não sabia o porquê, mas isso lhe parecia menos antinatural que tudo que estava acontecendo. Na verdade, não tinha a impressão de haver nada de errado com aquilo; Daniel estava deitado na cama e Matusa simplesmente estava ali com ele.

- Sabe o que você é, Daniel Cavallo? – Matusa começou a falar pela primeira vez com a voz firme, a pronúncia confiante e correta, o português perfeito. Não soava seco ou como uma ameaça em qualquer nível, soava paternal, mesmo confortante. – Você é um colecionador de sementes. Nasceu com duas dentro de si. Sementes existem para dar frutos, você sabe. E eu, eu sou aquele responsável pela colheita.

De repente não eram somente os dois. A sala estava cheia de pessoas silenciosas, que se mantinham em pé e olhavam para ele. Adultos, crianças, adolescentes imberbes, homens e mulheres, mesmo uma garotinha com um vestido de noiva. Todos possuíam as duas mãos enegrecidas, como a sua agora, e o negrume também invadia seus braços. Nenhum deles fazia som nenhum e todos eles, exceto Matusa, traziam os olhos firmemente fechados.

- Às vezes nos damos conta do fato de que somos nada mais que um fardo espiritual. Navegamos por um mar de almas e dele tiramos nosso sustento, porém não damos nada em troca. Trazemos sementes que não fecundamos e negamos ao mundo o que simplesmente lhe é de direito. Essa é a razão pela qual nos sentimos tão sem direção, pela qual acordamos em agonia, nos sentindo derrotados e ansiosos, mas não sabemos a causa. As pessoas mais corajosas entre eles extraíram eles mesmos suas sementes e as plantaram; outras pediram para nós removermos. Na verdade não faz diferença; o ato é o mesmo e todos eles receberam sua recompensa. Não é comum que as pessoas sejam apontadas o que fazer com tanta clareza, Daniel, e você agora está ciente que pode fazer por todos muito mais do que ele fez por você.
Considere-se, então, um colecionador de dádivas.

Daniel estava sozinho novamente.

O cheiro havia desaparecido; a sensação de mal estar também. Correu e viu as duas esferas ainda no copo, a esta altura, todo negro. Daniel agora podia pensar com clareza e se sentia feliz, não por simplesmente se ver livre do desconforto, mas acima de tudo, sabia de que duas sementes estavam falando e o que tinha que fazer. Sentia-se extremamente agradecido à Matusa, realmente havia recebido uma dádiva. Pensou em ligar para os pais, para Alice, para os amigos, para lhes contar o que havia lhe acontecido e despedir-se. Porém, isso lhe pareceu tão mundano que teve vergonha de seu pensamento. Na sua nova vida, não haveria espaço para sentimentalismos medíocres. Abriu exceção para um último pequeno ato sem sentido, na verdade uma despedida de seu antigo eu; foi até a cama, acendeu seu último cigarro, ligou o som para ouvir sua última música. Cantarolou junto parte da letra, seu verdadeiro sentido havia ficado oculto até hoje, agora sorria percebendo que finalmente compreendia o que estavam querendo dizer.

Eu sou a chave para a fechadura de sua casa
Que guarda seus brinquedos no sótão
E se você for muito longe lá dentro
Verá apenas meu reflexo

Apagou o cigarro, desligou o som, apagou a luz. Deitou-se na cama e disse, suavemente, sabendo que seria ouvido:

-Terminei. Podem fazer.

Friday, October 29, 2004

O colecionador parte II

O ar estava denso, pesado. A atmosfera era tão desconfortável que Daniel tinha a sensação de não estar respirando ar, ao menos não como conhecemos, mas algo espesso, quente, incômodo, não nutritivo. O sono foi agitado, inconstante, repleto de sonhos. Acordou suando frio diversas vezes, esforçando-se para se lembrar do que havia sonhado, e, embora estivesse certo de que era o mesmo sonho durante toda a noite, não sabia qual era.

Acordou no dia seguinte literalmente acabado. No sábado não tinha que trabalhar, porém não havia desejo de sociabilidade. Pensou em ligar para Alice, mas era um desejo tão distante que a simples idéia da existência dela parecia irreal. Custou a admitir para si mesmo que o seu real interesse naquele dia era a esfera. Mesmo tentando se convencer que era um objeto absolutamente sem importância, era inegável que, de alguma forma, exercia um certo grau de atração e de repulsa.

O ar continuava acre e pesado, como nunca esteve em sua casa; sentia-se levemente enjoado. Sentou-se de frente à mesa examinando o copo onde havia colocado a esfera. O copo estava enegrecido; da base até quase a borda, estava coberto de uma substância preta, sólida, meio porosa, como se alguém esfregasse pólvora molhada em todo o seu corpo. Teria essa substância vindo da esfera? Ela continuava lá, perfeita, e do mesmo tamanho que se lembrava. Exalava um forte cheiro agora também, um cheiro extremamente doce e agradável, um doce não enjoativo, na verdade o melhor perfume que Daniel já havia experimentado. Passou a mão pela substância preta; sentiu somente a textura de vidro normal. É como se ela já fosse parte do copo. Virou o copo e segurou a esfera na mão.

Na verdade, se não fosse por sua forma esférica perfeitamente simétrica, realmente parecia estar segurando algo como uma cereja. A esfera mantinha sua consistência úmida como uma fruta; apertando-a levemente, sentiu uma leve flexibilidade como se de fato apertasse uma. Não precisou cheirá-la para compreender que vinha dela o cheiro doce espalhado pelo quarto. Segurar este objeto aumentava a sensação de ansiedade e de peso que sentiu a noite inteira; além disso, trazia uma certa fascinação, uma sensação quase hipnotizante de prazer, impossível determinar porque. O quê, afinal, seria isso? A curiosidade lhe apertava o peito, mas não conseguia sentir energia suficiente para tomar alguma atitude para solucionar esta dúvida.

Contentava-se em segurar a esfera em sua mão.

E isso durou toda a manhã, e toda a tarde também. O telefone tocou em vão. As sensações de fome e de desconforto físico vieram e se foram, apenas para voltarem novamente. Daniel permanecia imóvel, a esfera imóvel em sua mão. Em certo momento, tudo lhe indicava que havia adormecido; um sono, por incrível que pareça, mais desconfortável que o da noite. Quando deu por si, ainda sentado na cadeira, o pescoço e as costas doídos, a tarde já dava lugar à noite e dessa vez Daniel lembrou-se vagamente do que acreditava ter sonhado.
Sonhou que diversas pessoas estiveram em sua casa durante a tarde, indo e saindo, às vezes muitas ao mesmo tempo. Não se lembrava quem eram essas pessoas, nem o que queriam, porém estava claro que estavam interessadas nele. Será que chegaram a se falar? Tudo indica que não; apenas olhavam para ele intensamente, mas nenhuma palavra era dita por nenhuma das partes. Depois, silenciosamente, se retiravam. A última delas fez algo no batente antes de fechar a porta; pela primeira vez desde que segurou a esfera na mão, Daniel levantou-se do lugar e correu até a porta, abrindo-a de supetão.
Outra esfera idêntica havia sido deixada ali. Daniel olhou para a palma da mão onde havia segurado a primeira esfera durante todo o dia; estava enegrecida como havia ficado o copo, porém não sentia nada de diferente em sua pele. Pegou a segunda esfera e a levou para dentro de casa.

O Colecionador Parte I

Cavallo. É, eu sei que é ridículo.
Daniel dá uma risada sem graça. A típica brincadeira que tem fundo de verdade. Não acha isso realmente engraçado, e, pela milionésima vez, amaldiçoa seu maldito ancestral que resolveu dar esse nome horrível à sua família e que, sem querer, estava condenando gerações futuras de garotos (ele inclusive) a anos de apelidos infernais na escola.

Claro que a garota diria que não tem nada de ridículo no nome; porém, nada que dissesse tiraria da sua cabeça que é por isso que elas logo se afastam sem dizer o nome. Eu não sei chegar em garotas, Daniel pensa também pela milionésima vez; porquê parece tão fácil para algumas pessoas? O que as pessoas se dizem nesse momento? Se diz algo que consegue ao mesmo tempo não soar grosseiro nem artificial? Certos mistérios são insondáveis por natureza; certos talentos são delegados à alguns e negados a outros, como se Deus organizasse uma fila e ele estivesse muito ocupado no momento para ocupar um lugar. “E vai se fuder também” pensa para Deus.

É por isso que o ambiente de casa noturna é tão propício. Álcool e drogas não são apenas tolerados, mas literalmente espera-se que estejam correndo na sua corrente sanguínea. Estar alí sem a consciência alterada é como trocar sexo por masturbação; experiências semelhantes, porém nem sequer no mesmo plano.

É bom sentir seu corpo diluído nas luzes. As batidas que soam ao mesmo tempo brega e agressivas, exatamente na borda da genialidade e da infantilidade total como é característico de todo som que se inspira nos anos 80 (o que significa, pensa Daniel, toda a música que existe para quem freqüenta lugares como aquele). Claro que ele sempre desce as escadas pensando em sexo, mas muito mais do que gostaria, ao contrário do que prega aos seus amigos, ele sai sozinho e sua noite se resumiu à apenas conversas bêbadas sobre coisas que pareciam muito importantes na hora mas estúpidas no dia seguinte.

Hoje, excepcionalmente, estava completamente sozinho. Nenhum amigo se dispôs e Daniel amava o Globo Repórter; amava a forma como ele sempre o obrigava a sair de casa. Já sentindo que todos os químicos (inclusive o álcool) deixavam de fazer efeitos, e sem energia para renovar as doses, decidiu que estava na hora de iniciar sua caminhada noturna para casa.

Morava sozinho; casa paga pelos pais que vivem no interior. E o interior da casa lembra muito como o interior do dono se encontra agora; vazio e o pouco que existe, desorganizado. Pelo menos não é um apartamento; odiava apartamentos e dane-se se a casa era velha e pequena, seu único problema é possuir um pequeno jardim na frente. Não tinha paciência para jardins e deixou de tentar cuidar dele após um mês de estadia.

- Boa noite, Matusa, eu lembrei da sua dose.

Matusa estava dormindo. Daniel sempre deixava um copo de plástico cheio de pinga para Matusa no caminho para casa. No início, fazia isso apenas porque ele e seus amigos riam vendo o mendigo sem dois dedos virando um copo inteiro daquela pinga péssima de uma vez só e resolveram transformar isso em uma tradição informal. Agora, não sabia porque continuava; só sabia que continuava. Após a mesma sucessão monótona de ruas do velho e enjoado caminho de casa, avistou seu jardim. Mas que merda era aquela?

Agora não havia mais nada. Por um breve segundo, Daniel teve a certeza absoluta de ter enxergado alguém em pé no seu jardim, de costas para ele. Mais especificamente, alguém pequeno; anão ou criança. E vestido em trajes femininos brancos; vestido de noiva? Seria uma garotinha? Mais detalhes não havia visto e poderia ser algo que não tem nada a ver com isso. Ainda com o coração disparado, racionalizou e arquivou a ocorrência na pasta “alucinações aleatórias causadas por uso constante de drogas e exaustão” deu o assunto por encerrado. Parado na porta da frente, deixou cair a chave; abaixando-se para pegá-la, algo que nunca havia visto na vida chamou imediatamente sua atenção. Daniel abaixou-se sobre um joelho para examinar.

Não era uma bolinha qualquer. Na verdade, era uma esfera milimetricamente perfeita; do tamanho de uma cereja, porém com um vermelho muito mais vivo e o formato muito artificial para ser algo produzido pela natureza. Pegou-a e notou que era decerto úmida e fria, exatamente a consistência de uma pequena fruta.
Só não sabia porque, o fato de estar segurando isso lhe trazia um misto de sensações tão esquisito; bem no fundo de sua cabeça algo sinalizava intensa ansiedade, talvez algo a temer, talvez algo a amar, porém era uma sensação vaga e indistinta. Amanhã eu vejo o que é; levou a pequena fruta para dentro e fechou a porta. A esfera agora estava dentro de um copo de vidro.