Thursday, November 04, 2004

O Colecionador - Final

E então eles vieram.

Daniel não se recorda de nada desta noite. Não se recorda de ter sentido dor, não se recorda de ter sentido qualquer tipo de êxtase. Quando pensa nesta noite, lembra-se de um sono profundo e bem dormido,talvez de um sonho vago com todas aquelas pessoas em volta de sua cama, acompanhando o momento sublime em que finalmente agarraria com as duas mãos seu propósito nesse mundo.
Acordou
Não havia ninguém. Porém, não olhava com o mesmo olhar: na verdade, não olhava sequer com os mesmos olhos. Como um recém nascido que os abre pela primeira vez, sentiu a luz os ferir, porém não era a mesma luz que conhecia. Era uma luz nova, vista pela primeira vez,: na verdade, estava vendo tudo pela primeira vez. Os móveis, a parede, o teto,a luminária, os cobertores: eram os mesmos objetos que conhecia e compreendia, porém não eram as mesmas coisas. Tudo adquirira um mesmo tom branco-acinzentado, como se os objetos fossem menos (ou mais) reais do que eram ontem à noite. Daniel tinha certeza que estava olhando a face verdadeira das coisas pela primeira vez.

Caminhou até o copo enegrecido que ainda estava em cima da mesa. No lugar das duas esferas, ali estavam, como esperado, as duas sementes extraídas de seu corpo. Ali estavam seus dois olhos.
Nas suas órbitas, anteriormente habitadas por seus dois olhos, estavam as duas esferas vermelhas, perfeitamente redondas. Daniel não precisou olhar no espelho para saber. Havia recebido sua recompensa.

“Sementes existem para dar frutos.”

Lembrou-se da importante lição de Matusa e caminhou até o jardim levando o copo na mão. Cavou a terra úmida, em dois buracos não muito fundos e espaçados; em cada um dos buracos colocou um dos seus olhos. Tapou os buracos com a terra, entrou novamente em casa. Dali só sairia alguns meses depois, quando cada uma das sementes plantadas desse origem à uma pequena árvore, e cada uma das árvores desse origem à somente um fruto: uma pequena esfera vermelha perfeitamente simétrica. Então, finalmente, pagaria sua dívida com o mundo.

Deixaria uma pequena esfera vermelha na porta do próxima colecionador de dádivas.

Wednesday, November 03, 2004

O Colecionador Parte III

Daniel gostaria de estar nauseado. Comparado com o que sentia agora, tudo o que se passou ontem se resumia a um leve desconforto físico e talvez um certo incômodo espiritual. O cheiro doce e agradável se impunha em toda a casa, invadia todos os quartos e Daniel estava se sentindo exausto, sufocado, cansado demais para sequer vomitar, drenado demais para pensar com clareza.

Embora sua intenção fosse segurar a esfera novamente, nada lhe restava a não ser deitar-se novamente na cama e esperar que os sonhos febris voltassem.
O copo enegrecido agora continha duas esferas idênticas.

A temperatura da casa estava sensivelmente mais baixa (ou seria Daniel que estava apenas com frio?), ainda assim suava intensamente. Olhou para a mão que havia ficado preta como o copo: aquela substância etérea ainda estava ali, continuava a não provocar nenhuma sensação em especial, e se espalhava pelo braço.

Sonhos se pronunciavam como flashes indistintos, insistindo em invadir sua consciência desperta. Uma sensação vaga sugeria uma certa ameaça naquilo tudo, por isso lutava para manter-se acordado; temia que pessoas estranhas vagassem por sua casa novamente, temia que acordasse e seu corpo estivesse totalmente tomado por aquilo que nascia de sua mão. Porém, estava fraco demais até para isso. Se via deitado na cama, mas agora não tinha nada que lhe garantisse estar dormindo ou acordado. Percebeu, então, que o velho mendigo Matusa estava sentado no chão ao lado de sua cama. Não o viu entrar; à quanto tempo estava ali? Não sabia o porquê, mas isso lhe parecia menos antinatural que tudo que estava acontecendo. Na verdade, não tinha a impressão de haver nada de errado com aquilo; Daniel estava deitado na cama e Matusa simplesmente estava ali com ele.

- Sabe o que você é, Daniel Cavallo? – Matusa começou a falar pela primeira vez com a voz firme, a pronúncia confiante e correta, o português perfeito. Não soava seco ou como uma ameaça em qualquer nível, soava paternal, mesmo confortante. – Você é um colecionador de sementes. Nasceu com duas dentro de si. Sementes existem para dar frutos, você sabe. E eu, eu sou aquele responsável pela colheita.

De repente não eram somente os dois. A sala estava cheia de pessoas silenciosas, que se mantinham em pé e olhavam para ele. Adultos, crianças, adolescentes imberbes, homens e mulheres, mesmo uma garotinha com um vestido de noiva. Todos possuíam as duas mãos enegrecidas, como a sua agora, e o negrume também invadia seus braços. Nenhum deles fazia som nenhum e todos eles, exceto Matusa, traziam os olhos firmemente fechados.

- Às vezes nos damos conta do fato de que somos nada mais que um fardo espiritual. Navegamos por um mar de almas e dele tiramos nosso sustento, porém não damos nada em troca. Trazemos sementes que não fecundamos e negamos ao mundo o que simplesmente lhe é de direito. Essa é a razão pela qual nos sentimos tão sem direção, pela qual acordamos em agonia, nos sentindo derrotados e ansiosos, mas não sabemos a causa. As pessoas mais corajosas entre eles extraíram eles mesmos suas sementes e as plantaram; outras pediram para nós removermos. Na verdade não faz diferença; o ato é o mesmo e todos eles receberam sua recompensa. Não é comum que as pessoas sejam apontadas o que fazer com tanta clareza, Daniel, e você agora está ciente que pode fazer por todos muito mais do que ele fez por você.
Considere-se, então, um colecionador de dádivas.

Daniel estava sozinho novamente.

O cheiro havia desaparecido; a sensação de mal estar também. Correu e viu as duas esferas ainda no copo, a esta altura, todo negro. Daniel agora podia pensar com clareza e se sentia feliz, não por simplesmente se ver livre do desconforto, mas acima de tudo, sabia de que duas sementes estavam falando e o que tinha que fazer. Sentia-se extremamente agradecido à Matusa, realmente havia recebido uma dádiva. Pensou em ligar para os pais, para Alice, para os amigos, para lhes contar o que havia lhe acontecido e despedir-se. Porém, isso lhe pareceu tão mundano que teve vergonha de seu pensamento. Na sua nova vida, não haveria espaço para sentimentalismos medíocres. Abriu exceção para um último pequeno ato sem sentido, na verdade uma despedida de seu antigo eu; foi até a cama, acendeu seu último cigarro, ligou o som para ouvir sua última música. Cantarolou junto parte da letra, seu verdadeiro sentido havia ficado oculto até hoje, agora sorria percebendo que finalmente compreendia o que estavam querendo dizer.

Eu sou a chave para a fechadura de sua casa
Que guarda seus brinquedos no sótão
E se você for muito longe lá dentro
Verá apenas meu reflexo

Apagou o cigarro, desligou o som, apagou a luz. Deitou-se na cama e disse, suavemente, sabendo que seria ouvido:

-Terminei. Podem fazer.