Wednesday, November 03, 2004

O Colecionador Parte III

Daniel gostaria de estar nauseado. Comparado com o que sentia agora, tudo o que se passou ontem se resumia a um leve desconforto físico e talvez um certo incômodo espiritual. O cheiro doce e agradável se impunha em toda a casa, invadia todos os quartos e Daniel estava se sentindo exausto, sufocado, cansado demais para sequer vomitar, drenado demais para pensar com clareza.

Embora sua intenção fosse segurar a esfera novamente, nada lhe restava a não ser deitar-se novamente na cama e esperar que os sonhos febris voltassem.
O copo enegrecido agora continha duas esferas idênticas.

A temperatura da casa estava sensivelmente mais baixa (ou seria Daniel que estava apenas com frio?), ainda assim suava intensamente. Olhou para a mão que havia ficado preta como o copo: aquela substância etérea ainda estava ali, continuava a não provocar nenhuma sensação em especial, e se espalhava pelo braço.

Sonhos se pronunciavam como flashes indistintos, insistindo em invadir sua consciência desperta. Uma sensação vaga sugeria uma certa ameaça naquilo tudo, por isso lutava para manter-se acordado; temia que pessoas estranhas vagassem por sua casa novamente, temia que acordasse e seu corpo estivesse totalmente tomado por aquilo que nascia de sua mão. Porém, estava fraco demais até para isso. Se via deitado na cama, mas agora não tinha nada que lhe garantisse estar dormindo ou acordado. Percebeu, então, que o velho mendigo Matusa estava sentado no chão ao lado de sua cama. Não o viu entrar; à quanto tempo estava ali? Não sabia o porquê, mas isso lhe parecia menos antinatural que tudo que estava acontecendo. Na verdade, não tinha a impressão de haver nada de errado com aquilo; Daniel estava deitado na cama e Matusa simplesmente estava ali com ele.

- Sabe o que você é, Daniel Cavallo? – Matusa começou a falar pela primeira vez com a voz firme, a pronúncia confiante e correta, o português perfeito. Não soava seco ou como uma ameaça em qualquer nível, soava paternal, mesmo confortante. – Você é um colecionador de sementes. Nasceu com duas dentro de si. Sementes existem para dar frutos, você sabe. E eu, eu sou aquele responsável pela colheita.

De repente não eram somente os dois. A sala estava cheia de pessoas silenciosas, que se mantinham em pé e olhavam para ele. Adultos, crianças, adolescentes imberbes, homens e mulheres, mesmo uma garotinha com um vestido de noiva. Todos possuíam as duas mãos enegrecidas, como a sua agora, e o negrume também invadia seus braços. Nenhum deles fazia som nenhum e todos eles, exceto Matusa, traziam os olhos firmemente fechados.

- Às vezes nos damos conta do fato de que somos nada mais que um fardo espiritual. Navegamos por um mar de almas e dele tiramos nosso sustento, porém não damos nada em troca. Trazemos sementes que não fecundamos e negamos ao mundo o que simplesmente lhe é de direito. Essa é a razão pela qual nos sentimos tão sem direção, pela qual acordamos em agonia, nos sentindo derrotados e ansiosos, mas não sabemos a causa. As pessoas mais corajosas entre eles extraíram eles mesmos suas sementes e as plantaram; outras pediram para nós removermos. Na verdade não faz diferença; o ato é o mesmo e todos eles receberam sua recompensa. Não é comum que as pessoas sejam apontadas o que fazer com tanta clareza, Daniel, e você agora está ciente que pode fazer por todos muito mais do que ele fez por você.
Considere-se, então, um colecionador de dádivas.

Daniel estava sozinho novamente.

O cheiro havia desaparecido; a sensação de mal estar também. Correu e viu as duas esferas ainda no copo, a esta altura, todo negro. Daniel agora podia pensar com clareza e se sentia feliz, não por simplesmente se ver livre do desconforto, mas acima de tudo, sabia de que duas sementes estavam falando e o que tinha que fazer. Sentia-se extremamente agradecido à Matusa, realmente havia recebido uma dádiva. Pensou em ligar para os pais, para Alice, para os amigos, para lhes contar o que havia lhe acontecido e despedir-se. Porém, isso lhe pareceu tão mundano que teve vergonha de seu pensamento. Na sua nova vida, não haveria espaço para sentimentalismos medíocres. Abriu exceção para um último pequeno ato sem sentido, na verdade uma despedida de seu antigo eu; foi até a cama, acendeu seu último cigarro, ligou o som para ouvir sua última música. Cantarolou junto parte da letra, seu verdadeiro sentido havia ficado oculto até hoje, agora sorria percebendo que finalmente compreendia o que estavam querendo dizer.

Eu sou a chave para a fechadura de sua casa
Que guarda seus brinquedos no sótão
E se você for muito longe lá dentro
Verá apenas meu reflexo

Apagou o cigarro, desligou o som, apagou a luz. Deitou-se na cama e disse, suavemente, sabendo que seria ouvido:

-Terminei. Podem fazer.

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